segunda-feira, 27 de abril de 2020

De um dia para o outro!


Morreu a tarde sobre a várzea enlameada num dia frio de agosto sob uma garoa com vento. Nego Zeca, peão da estância do Dr. Maurício há um eito de tempo, boleou a perna apeando do zaino no bolicho de pedra. Eu sabia que era ele desde que apareceu na curva do brete. Conheço de longe aquele chapéu sovado com a aba mascada na frente. Apesar de que estava já meio lusco -fusco pelo entardecer nublado, mas o poncho era conhecido também. Um poncho preto de carnal vermelho, este sim não era velho, ele comprou lá pras banda oriental, nos castelhanos, como se diz. Ele andava bem dos “cobres” desde que pegou uma empreitada para domar três aporreados nos campos do patrão.
 
Fiquei olhando o Zeca enquanto ele amarrava o cavalo no cinamomo em frente ao bolicho. 
 
Encharcado que dava pena. As botas esborrifavam água a cada passo que dava. Entrou passando com dificuldade na porta: além do poncho que tomava conta de um baita espaço, ainda teve que dividir o pequeno vão com o peão da fazenda lá dos Gouvêa, o gringo “pé de cabra”, que tinha esse apelido por causa dos pés grandes e tortos. Entreolharam-se na porta. Zeca deu uma sacudida nos ombros, para derrubar os pingos da chuva enquanto aguardava mais espaço para passar. Quando viu que o gringo não ia dar o lado, meteu o corpo e ,num “buenas tardes” sonoro, se entreverou. 
 
O gringo só deu uma olhada por sobre o ombro e continuou encostado na porta; por farra, ainda deu uma cuspida na água da chuva. O Zeca se achegou no balcão e pediu dois dedos de canha pro bolicheiro. Eu e os demais olhamos na direção do balcão e vimos o Zeca com a mão espichada mostrando dois dedos, mas eram os dedos polegar e o mínimo, indicando o tamanho do copo, que num talagaço só, deixou pelo meio da canha pura do alambique do Manuel, dono do bolicho. Quando soltou o braço bateu no balcão como a debochar de alguém.
 
“- E aí?, como está velho Zeca? quanto tempo? – perguntou o meu tio Armando, que já o conhecia de outras paragens em estâncias da redondeza; e se não me engano, acho que até se criaram juntos. “- Tchê, às minhas custas vou indo mui bueno, loco de especial. Quer tomar um trago comigo? – perguntou. – Aceito claro -respondeu o tio. – Bolicheiro, bota mais um aqui pro parceiro, - pediu. - Este zaino tu não tinhas quando te vi a última vez! onde arranjaste?- perguntou o tio. – já faz tempo que sovo os pelegos nele - respondeu. – ora, vejam, e está delgadinho! Afirmou, olhando o cavalo pela janela do bolicho. – ganhei este na última empreitada nos campos dos Gouvêa, e mais uns trocados de lambuja. – disse Zeca num tom bem pachola. – Pois não deve ser tão bom na cancha reta! Afirmou o “pé de cabra”, se aproximando do balcão e se metendo na conversa. – com este eu nunca corri, mas nunca perdi pra ninguém por estas bandas, respondeu. – aposto que para o meu malacara ele perde, aliás, vocês perdem, e eu ainda dou luz. - Retrucou o gringo. – Tá apostado e não quero luz. O que vai valer? Perguntou Zeca, virando-se para o gringo e bombeando bem nos olhos. – pode valer a própria montaria com arreios e tudo. Respondeu. – está bem! “- alguém vai voltar a pé amanhã”, culminou Zeca, que ergueu o copo nos beiços e arrebatou o resto da canha. – para juiz escolho o seu Armando, - disse Zeca para o gringo, que respondeu: - por mim tanto faz, vou ganhar mesmo - completou.
 
Eu, o tio e o bolicheiro nos entreolhamos, e passamos a ser testemunhas do acordo ali firmado, que ficou acertado para o outro dia cedo. 
 
A cancha ficava atrás do bolicho. Marcada a pata de cavalo por carreiras seguidas, sempre esburacada, naquele dia estava também encharcada num lodaçal só. Na lateral tinha umas tramas quebradas dos encontrões dos parelheiros e pela ação do tempo também.
 
Naquela manhã de domingo, a garoa guasqueada tornava o cenário da carreira mais desafiante. Tanto o Zeca quanto o gringo, pé de cabra, ainda oitavados no balcão, molhavam a goela num gole de canha, sem se olharem e num clima nada amistoso. Aliás, essa animosidade já vinha de muito tempo, desde que o Zeca tomou a namorada do gringo num fandango ali por perto.
 
Foram interrompidos pelo tio, agora juiz, que disse: - Bueno tchê, é para hoje ou pra amanhã a tal aposta? – perguntou em brados. Os dois num único gole esvaziaram os copos, e secando os beiços na manga da camisa, e alçaram para os fundos onde os cavalos aguardavam pacientes sob um chuvisco frio. Ao passo foram se encaminhando para o partidor. Nas tramas da cancha, foram se debruçando os poucos avisados e fregueses do bolicho. Uns de poncho, capa ou de guarda-chuva. Eu fiquei na janela de onde ainda podia se ver um pedaço do trecho, o melhor, a linha de chegada.
 
Quando gritaram “se vieram”, assim que o tio Armando baixou o braço, os dois saíram emparelhados por um tempo, mas logo depois o zaino passou jogando água embarrada e tomando a dianteira e não viu mais o cavalo do gringo. - Nem teve graça - comentava Zeca dentro do bolicho. Pediu mais um gole de canha e dava risada.
 
Absorto em sua comemoração, não viu a chegada do gringo. O perdedor trazia ainda a ira da derrota, era uma coisa que se podia ver nos olhos. Chegou para cumprimentar o vencedor e quando o companheiro Zeca se virou para ele, com uma destreza que não deixou a gente enxergar, puxou uma peixeira de bainha prateada que cruzou o pouco espaço que havia entre os dois e foi se encravar no lado esquerdo do peito, varando o poncho novo do Zeca.
 
Zeca esboçou um sorriso olhando o gringo com os olhos esbugalhados e brilhantes. Foi desabando amassando o poncho. Quem estava assistindo lá fora ainda estava entrando no recinto. Se tromparam na porta com o gringo que se perdeu brete afora no malacara perdedor.
 
Foi silenciando a algazarra dos que torceram pro amigo e um tom funesto tomou conta do ambiente ao passo que Zeca silenciava sua vitória sob o poncho novo, agora sendo encharcado pelo sangue que se misturava ao vermelho do carnal. 
 
Eu assisti a tudo. Contemplava intrigado e triste os dois lados da vida: da janela eu vi a carreira sendo vencida pelo amigo Zeca, e olhando para dentro do bolicho, o vi perdendo a vida, de um dia para o outro.
 
Cesar Tomazzini (Charlas e Reculutas)
 
Fonte! Chasque de fundamento do meu amigo Cesar Tomazini, publicado em seu sítio Facebook. Abra as porteiras clicando em: 

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