Dia 21 de março é a marca da ONU para reflexão ao
racismo, pelo Massacre de Shaperville em Joanesburgo em 1960. Como já citei
aqui e repito, (para que não esqueçam e porque sempre temos novos leitores),
nasci na cidade de Uruguaiana e me criei entre os meios urbano e rural, mais
precisamente nos distritos do Imbaá, depois em São Marcos e na Barragem
Sanchuri.
Na década de 1970 vivia em São Marcos, na barranca do
Rio Uruguai, de frente a Yapeju, Província de Corrientes, Argentina, época em
que meu pai fora diretor do projeto Cidade dos Meninos da FEBEM, quando
convivíamos fraternalmente com aquela gurizada interna, onde de certa feita eu
e meus irmãos (Quico, Renato e Leila Fagundes de Abreu) éramos internos também.
Pela segunda vez morávamos num orfanato, a primeira fora
no segundo quartel da década 1960, na Escola Assistencial Santa Rita que virou
Sociedade de Amparo ao Menor de Uruguaiana que a FEBEM encampou.
Como era lindo ter muitos irmãos para brincar de tudo,
só nos separávamos quando íamos para o colégio, do contrario éramos unha e
carne, sempre juntos, inventando o que fazer para passar o tempo,
principalmente nos finais de semana.
Naquela irmandade, tinha guri de todos os pelos,
tamanhos, idades e raças, bem distribuído e harmoniosamente vivendo brancos,
pretos, índios e mestiços, tendo como base moral a das igrejas católica e
metodista, nunca vi alguma briga por questões raciais ou privilégios, tudo era
comum de todos, deveres e direitos iguais.
Certa feita em São Marcos num final de semana,
combinamos eu e o Quico, meu irmão mais moço, irmos a um baile no salão da
Colônia das Rosas, no distrito de João Arregui, lindeiro da Barragem Sanchuri e
de Itaqui, assim convidamos o Canhão, nosso irmão negro interno da SAMU e de
FABEM, com quem fomos criança e estávamos juvenis.
O Canhão ficava no orfanato nos finais de semana pela
distância de casa, ele era de Viamão, de nome Vilmar, compleição mediana,
sadio, forte, muito alegre, disposto, amigo para qualquer cruzada, sempre
estava disposto e o apelido era porque tinha um pataço no futebol além de ter
uma pele cor de petróleo.
Então naquele sábado de verão quando anoiteceu, nos
ajeitamos e logo que o pai se recolheu para dormir, pé, por pé eu peguei a
chave do carro e o trio, na surdina, sacamos empurrando o Chevrolet Opala da
garagem, e quando estávamos numa distância boa, funcionei o motor e nos tocamos
para o baile, mais faceiro que pato na taipa do açude, louco pra chegar n’agua.
Em João Arregui, o surungo estava formado, estacionamos
perto da entrada, na bilheteria pedi logo três ingressos, dai quando adentramos
uns quatro paços no salão, alguém da portaria falou, vocês dois podem passar,
mas aquele rapaz não. Na hora exclamei – porque não, se ele pagou ingresso? E o
cara respondeu: Porque ele é negro!
Olhei para o Vilmar e ele meio encabulado falou, vão
vocês que eu espero lá fora. Juro, me deu vontade de prender o pé naquela
classe escolar que fazia vez de balcão da portaria, mas os bons costumes me
impediram, olhei para o Quico e disse, se ele não entra eu também não vou
entrar, o Quico em cima do laço largou por deboche, e nem eu fico nesta bosta.
Assim pegamos os pilas, saímos e retornamos para casa
fazendo graça para não chorar do triste episódio e desde então me indago: Porque
tem gente que se acha superior a outras porque é branco, como se a cor da pele
fosse o reflexo da alma?
Que bom que naquela década surgiu o Rei Pelé, o maior
atleta de futebol do mundo de todos os tempos e que nesse milênio temos um
negro como o homem mais poderoso do planeta, mandando no baile da Casa
Branca. E até hoje sinto vergonha pela
Colônia das Rosas que por certo murcharam e morreram indignadas ao verem tanta
ignorância exalada pelo odor do preconceito.
Para pensar: A alma é branca e o espírito é
luz, a cor de cada corpo, foi naturalmente imposta pela condição do habitat.
Fonte! Coluna Regionalismo, por Dorotéo Fagundes de Abreu, do dia 18 de março de 2014.