Em 23 de setembro, seu nascimento completa 232 anos. Em julho,
chega-se a 173 anos de sua morte. A Revolução Farroupilha e a guerra
civil decorrente contribuíram para a construção de uma identidade com
laços tão fortes que até hoje é utilizada como orientação política e
cultural por diferentes segmentos da sociedade. E Bento Gonçalves foi
quem permaneceu com mais força no imaginário popular. Assim, contribuiu
de forma definitiva para o perfil do gaúcho, símbolo de bravura e
generosidade.
Já se passaram entre cinco e seis gerações e o chamado Decênio
Heróico ainda é lembrado: música, literatura, arte, dança, eventos
folclóricos e cívicos, inclusive nas solenidades oficiais do Estado,
quando é desfraldada a bandeira gaúcha, que teve origem no pavilhão
farroupilha, e ao som do Hino Rio-grandense, composto a mando dos
farrapos.
Não foi sempre assim. Terminada a Guerra dos Farrapos, houve o
silêncio imposto pelo Império, que só foi quebrado décadas depois pelo
que era produzido na Sociedade Partenon Literário de Porto Alegre,
especialmente na literatura mitificadora de Apolinário Porto Alegre, na
qual o autor exalta a força física e moral dos homens livres do campo,
em contraste com a vida degradante de quem vive nas cidades.
A pesquisadora Daysi Lange Albeche, em seu livro Imagens do gaúcho,
lembra que o gaúcho aparece pela primeira vez na literatura como
símbolo rio-grandense em 1877, na obra Os Farrapos, de Oliveira Belo. E a
mitificação do gaúcho passa a ser muito intensa no período da República
Velha.
A partir daí, centenas de escritores renderam homenagens a Bento
Gonçalves. Hoje, o general é nome de município, avenidas, escolas e
Centros de Tradições Gaúchas até no Japão. Há bustos espalhados por
várias cidades, inclusive em outros países. Em Porto Alegre, sua estátua
montado a cavalo se destaca na paisagem da avenida João Pessoa.
Mas o mais famoso monumento em sua homenagem foi inaugurado em
1909, em Rio Grande, cidade portuária que os rebeldes comandados pelo
general farrapo nunca conseguiram conquistar. Bento Gonçalves também
virou patrono do Regimento de Cavalaria da Brigada Militar, o corpo
policial que ele combateu na sua origem.
Apesar de tudo, a única imagem fiel do líder farrapo, embora a obra
não tenha autoria e nem data, é uma pintura a óleo, doada por
descendentes ao Museu Julio de Castilhos, há quase 50 anos. O quadro
ainda está no espaço cultural no Centro de Porto Alegre, mas atualmente
não está em exposição.
Retrato está guardado no Museu Julio de Castilhos
 |
Conforme filho do general farrapo, pintura a óleo é 'o único retrato que existe' |
"Exmo Senhor Diretor do
Museu Julio de Castilhos. O quadro que ora ofereço ao Museu do Estado é
considerado o melhor retrato de Bento Gonçalves (...) O único retrato
que existe, segundo informe que ministrara seu filho, Joaquim
Gonçalves."
O trecho da carta de doação assinada por
Dario Centeno Crespo, bisneto do general farrapo, e enviada ao museu
junto com a pintura em 9 de abril de 1952, não deixa dúvidas de que é a
imagem fiel de Bento. O quadro estava em Pelotas, na casa de um primo de
Dario, Antonio Gonçalves Barbosa. Não se tem registros se a moldura é
original. Só a tela mede 82 centímetros de altura e 65,2 centímetros de
largura. Com a moldura, as medidas ficam em 96 cm por 79,2 cm.
A obra, assim como espadas, pinturas e
outros objetos relacionados à Revolução, foram retirados de exposição
até a Sala Farroupilha ser reorganizada, segundo a diretora do Museu de
Castilhos, Doris Couto. Na descrição formal da pintura a óleo, consta o
seguinte texto: "Retrato em meio corpo, em 3/4 voltado para a esquerda,
com cabelos curtos e castanhos, suíças longas e da mesma cor, vestido de
uniforme militar de gala, branco na parte inferior e quase preto na
casaca, esta apresentando ornamentos dourados e brancos, com dragonas e
detalhe de cinto dourado, com condecorações no lado esquerdo do peito,
com as mãos enluvadas em branco, uma sobre a outra, apoiada sobre
espada, fundo bidimensional, em degrade. Apresenta volume e policromia.
Formato retangular-vertical. Com moldura. Sem passe-par-tout. Chassi
único. Óleo sobre tela. Sem assinatura e sem data na obra".
Segundo os relatos do seu filho Joaquim -
que podem ser encontrados em cartas no Arquivo Histórico do Rio Grande
do Sul e em trechos de livros de alguns autores -, Bento tinha cabelos e
olhos castanhos. Era magro. Excelente cavaleiro e espadachim, e
escrevia muito bem. Era um homem da tropa, simples, não gostava de andar
uniformizado, ostentando os galões.
Ele posou para a famosa pintura a óleo
na residência de sua propriedade, a estância do Cristal. A figura é
retratada em redução, pois sua estatura, segundo familiares, era de 1,77
metro, sendo considerado um homem alto para os padrões da época.
Nas memórias do revolucionário italiano
Giuseppe Garibaldi, Bento tinha a aparência de um jovem de 25 anos, pelo
seu porte atlético, mas o general já tinha uns 47 anos na época.
A imagem falsa
 |
Luiza Prado/JC
|
Há uma outra imagem no
Museu Julio de Castilhos, identificada e exibida como sendo de Bento
Gonçalves. A reprodução teria sido feita em Bagé a partir de um
daguerreótipo, equipamento fotográfico rústico, mas também não se sabe a
data.
Entretanto, a imagem não é de Bento
Gonçalves. O historiador Moacyr Flores, um dos maiores estudiosos da
Revolução Farroupilha, identificou a foto na coleção Alfredo Varela que o
homem retratado na imagem é Manuel Aragão e Silva, o Carvalhinho,
oficial farrapo.
Bisneto de Ornellas queria ser guerreiro
Bento Gonçalves era
bisneto de Jerônimo de Ornellas, fundador de Porto Alegre. Foi o 10º dos
14 filhos do português Joaquim Gonçalves da Silva e da gaúcha Perpétua
da Costa Meireles.
Bentinho, como era chamado, nasceu em 23
de setembro de 1788. Órfão de mãe aos 15 anos, criado desde então pela
avó, e que a família queria ver padre, enveredou para o trabalho
campeiro e tomou gosto pelas armas. Aos 17 anos, era um exímio cavaleiro
e espadachim. Se alistou em 1811, aos 23 anos, para lutar nas guerras
da Cisplatina em defesa de Portugal. Até então vivia na lida campeira,
entre idas e vindas das estâncias de seu pai e dos irmãos mais velhos. A
estância do Cristal era de seu pai, que recebeu de herança, assim como a
marca da sesmaria, registrada em 1814.
O publicitário Raul Justino Ribeiro
Moreira, tataraneto de Bento Gonçalves, garante que o general ficou
pobre após a Guerra dos Farrapos. "Ele herdou três sesmarias do pai e os
animais, fonte de renda da família, somavam mais de 30 mil rezes no
início da guerra, e saiu sem nada. Ganhou algumas rezes para recomeçar a
vida, e foi isso que deixou quando morreu."
Moreira é o principal herdeiro do
espólio do líder farrapo, e possui em seu acervo cerca de 300 peças do
parente ilustre. São fotografias, cartas, livros, mapas e documentos,
diretamente ligados a Bento e sua família.
Os objetos mais valiosos, como a espada
do general, cujo símbolo do Império gravado no punhal indica que Bento a
usava desde antes da Revolução, e uma bengala com uma lâmina cortante
no seu interior, permanecem praticamente o ano todo guardadas em cofre
de banco. O material só sai de lá para atender a pedidos de exposições. A
última ocorreu em outubro de 2019, durante as comemorações dos 129 anos
do município de Bento Gonçalves.
O coronel que se rebelou contra o Império
 |
Giuseppe Garibaldi, Bento Gonçalves e David
Canabarro: líderes revolucionários
/Reprodução obra de Guido Mondin/Divulgação/JC
|
Para alguns
historiadores, Bento Gonçalves queria a permanência do regime
monárquico. Os monarquistas, por sua vez, o acusavam de conspirador e
separatista. Bento era fazendeiro abastado e senhor de escravos, mas
nutria convicções republicanas. Seus discursos como deputado na
recém-inaugurada Assembleia Provincial levaram-no a ter de dar
explicações na Corte. Seus inimigos políticos o acusavam de tramar
contra o Império nas lojas maçônicas disfarçadas de gabinetes de
leitura.
Para os liberais exaltados, isso soaria
como um elogio, mas não para um oficial graduado como Bento que, mesmo
depois do 20 de Setembro, finalizava seus manifestos saudando "o nosso
jovem monarca constitucional!", Dom Pedro II, com apenas 10 anos, futuro
imperador.
Nos livros, pesquisadores tentam
explicar as razões para um coronel da Guarda Nacional e um de seus
melhores comandantes nas fronteiras do Sul ter se voltado contra o
Império. Afinal, o que moveu um pai de seis filhos pequenos e dois
recém-saídos da adolescência a sacrificar o convívio com a família e
quase todas as suas posses para lutar contra aqueles com quem um dia
ombreou nos campos de batalhas? Militar experiente, arquitetou uma
revolução sem medir as consequências? Que influência teve em sua
formação a bandeira libertária do caudilho Artigas?
Biógrafos apenas pincelaram a vida de
Bento Gonçalves no Uruguai, onde chegou em 1812, quando tinha 24 anos,
indo morar na vila de Cerro Largo, atual cidade de Melo, onde permaneceu
por 15 anos. Foi chefe de guerrilhas, comerciante na fronteira e
proprietário de pelo menos duas estâncias, uma próximo à fronteira de
Jaguarão, onde seu irmão, Manuel, criava gado, e outra, que era a famosa
Leonche. Também foi chefe político do distrito ao ser eleito alcaide,
uma espécie de prefeito, cujo poder explorou também para repassar
informações à Coroa.
Acusaram Bento Gonçalves de ter aderido à
causa dos castelhanos. Antônio, um de seus irmãos mais velhos, era
amigo do general uruguaio José Artigas e de seu oficial Juan Antonio
Lavalleja, que tratava os Gonçalves por compadres. Bento ainda era amigo
do padre alagoense José Caldas, entusiasta republicano e confidente do
argentino Alvear.
Para o professor Victor Gannello Lemos,
que leciona História em Melo, a presença de Bento Gonçalves no Uruguai
serviu de pretexto para ligá-lo aos movimentos artiguistas e ser acusado
de trair a sua pátria. "Durante a (Guerra da) Cisplatina, ele
justificou com documentos sua fidelidade ao Império português para
provar que fora escolhido para distintas funções públicas por indicação
dos próprios chefes militares luso-brasileiros que ocupavam o território
oriental."
Ganello lamenta o fato de ainda não
terem sido feitos estudos sobre a vida do general farrapo no Nordeste do
território oriental. Para ele, os valiosos trabalhos de Walter
Spalding, Othelo Rosa e Aurélio Porto, entre outros, não aprofundaram a
pesquisa sobre uma das mais singulares figuras da história
rio-grandense. "Não se discutiram suas ideias, não se examinaram seus
passos e ainda o acusaram de servir à causa de Artigas", adverte.
No Uruguai, um tempo para a família e para os negócios
 |
Estância Leonche, atual La Madrugada, que foi
propriedade de Bento
Gonçalves entre 1816 e
1825/Cleber Dioni Tentardini/Ddivulgação/JC
|
Bento Gonçalves se casa em
1814, aos 26 anos, com Caetana Garcia e Gonzáles, filha do uruguaio
Narciso com a gaúcha de Povo Novo, Maria Gonzáles. O casal teve oito
filhos: Perpétua, Joaquim, o Quincas, Bento Filho, Caetano, Leão, Marco
Antônio, Maria Angélica e Ana Joaquina.
Em
1816, Bento escreve ao pai, então vereador na Capital, dizendo que
depois dos desgostos que passou durante o governo dos rebeldes, estava
com um "negócio de fazendas e bebidas" e havia comprado uma estância por
30 mil cruzados. Era a Leonche, atual La Madrugada, perto dos arroios
Leoncho e Corrales del Parao, no município de Vergara. Os campos somavam
25 mil hectares, segundo a relações públicas de Melo, Elvira del Rio.
Em
1917, o general Carlos Lecór invade a Banda Oriental. Bento já tinha
milhares de cabeças de gado, mas não resistiu e engrossou as fileiras
imperiais. Arrendou suas terras ao irmão João e mandou mulher e filhos
para Cerro Largo. Propôs um plano de defesa móvel ao longo do rio
Jaguarão e passou a atuar como capitão de milícias. Em março de 1820, é
promovido a major. Seu comando se estende em toda a fronteira do rio
Jaguarão até o Chuí. O general Lecór assume o governo da Cisplatina, que
vai durar oito anos.
Em 1822, compra
uma grande estância na atual cidade uruguaia de Rio Branco, em sociedade
com Boaventura Barcelos. Segundo o historiador Eduardo Alvares Soares,
há muitos descendentes dos Gonçalves da Silva em Jaguarão; alguns
retiraram ou perderam o segundo sobrenome, como a família do médico e
ex-governador Carlos Barbosa Gonçalves, que era neto de Manuel, portanto
sobrinho-neto de Bento.
Em 1825, vende
a estância Leonche, deixa Cerro Largo em definitivo e vai residir na
estância do Cristal. A passagem por Cerro Largo ficou registrada na
capital, Melo, onde há um busto de Bento no canteiro central da avenida
Assis Brasil. O casarão em que o chefe militar morou no povoado,
defronte à Praça Constituição, é identificado por uma placa colocada por
tradicionalistas de Aceguá. Após a proclamação da independência do
Uruguai, Bento, aos 41 anos, é promovido a coronel do Estado Maior e
assume o comando do 4º Regimento de Cavalaria de Linha, em Jaguarão,
tendo sob suas ordens 10 mil homens.
Entre a pena e a espada
Bento Gonçalves era
pessoa bem instruída. Seguidamente trocava correspondências com o pai,
que morou mais de 10 anos na Capital. O Arquivo Histórico do Estado
possui algumas das cartas. São quase ilegíveis pela linguagem, com
abreviaturas e um "portunhol". Na mais antiga, de 1º de fevereiro de
1806, quando tinha 17 anos, informava ao pai que havia recebido "do
patrão da canoa 400 alqueires de sal e este leva 160 couros na dita
canoa, juntamente com 1.413 chifres e três tachos para se comporem, e um
surrão de marmelos passados".
Na correspondência oficial, cultivava um
estilo sóbrio, mas com amigos escrevia com afeto. Nas proclamações,
dizia o que os rebeldes queriam ouvir. Durante a Revolução, percebeu a
irresistível força da opinião pública. Dava especial atenção às
comunicações e criou um serviço próprio de correio a cavalo. Bento
detestava intrigas, mas era mestre em criá-las. Quando conveniente,
escamoteava informações. Em 1838, enviou um texto sobre a corrupção na
Corte para Domingos José de Almeida (ministro da Fazenda da República
Rio-Grandense e fundador do jornal O Povo) publicar, mas suprimiu
trechos para evitar que o autor fosse descoberto.
Manejava a pena com perícia, mas
dominava melhor ainda a espada. Participou de duelos para defender sua
honra, o primeiro com um mulato, ainda jovem, e, depois, com seu primo
Onofre. Em outra refrega, feriu um oficial das colunas do temido Pedro
Moringue, que investia contra os farrapos que ficaram para trás durante
as retiradas. O duelo com o primo ocorreu em 1844 no Cerro do Topador,
em Santana do Livramento. O motivo: Onofre o teria chamado de "ladrão da
vida" na presença da tropa e através de cartas.
Bento Gonçalves foi acusado de
assassino, ladrão e contrabandista. Submeteu Porto Alegre ao maior sítio
de sua história, provocando bombardeios e racionamento de comida, mas
se tornou patrono do Regimento de Cavalaria da Brigada Militar. O
historiador Tau Golin publicou o livro Bento Gonçalves - O herói ladrão, em que chama o líder farrapo de contrabandista e proprietário de escravos.
Para alguns historiadores, não foi herói
nem vilão, apenas um homem de seu tempo. Fernando Sampaio escreveu que a
mão de obra barata do produtor de charque era a escrava. Sobre o
contrabando de gado, alega que essa prática era uma atividade social
revolucionária, para fugir dos impostos.
A promessa de liberdade aos negros que
lutassem nas colunas farrapas, embora não tenha sido cumprida, passou à
história como um marco na luta pela abolição. Documentos demonstram que,
ao negociar com o Império, Bento ameaçou o barão de Caxias: "Se o
tratado de paz não assegurar a alforria dos ex-escravos revolucionários,
continuaremos a guerra, para que não voltem aos grilhões os negros que
há tantos anos lutam pela liberdade da América". O historiador Moacyr
Flores defende a tese da traição em Porongos - quando os soldados negros
foram dizimados -, mas ressalva que Bento foi retirado das negociações
porque não abria mão da liberdade aos escravos. O acordo de Ponche Verde
previa que ficariam livres todos os cativos que lutaram ao lado da
República Rio-Grandense.
Jornal registrou
a morte,
Cúria não
Bento Gonçalves morreu em
18 de julho de 1847, aos 58 anos, abatido pela pleurisia, na casa de
Gomes Jardim, em Pedras Brancas (atual Guaíba). Há mistério sobre a
existência do registro de óbito do chefe farroupilha, pois nem a Cúria
Metropolitana nem as igrejas mais antigas, de Rio Grande, Viamão e
Triunfo, possuem tal documento.
A
explicação pode estar relacionada ao silêncio que tomou conta das ruas e
da imprensa. Era proibido escrever sobre a Revolução. Foi encontrado
apenas um registro no jornal O Rio-Grandense, de Rio Grande, de 4 de
agosto de 1847. A Biblioteca Riograndense possui um exemplar com a
pequena nota, de seis linhas em uma coluna, na página três do impresso.
Fonte! Chasque de Cleber Dioni
Tentardini, publicado na edição do dia 21 de fevereiro de 2020, do Jornal do Comércio de Porto Alegre (RS) - reportagem cultural do "Caderno Viver".
Cleber Dioni Tentardini é jornalista. Nascido em Santana do Livramento, formou-se em
Porto Alegre. É autor de cinco livros sobre história e meio ambiente,
entre eles O menino que se tornou Brizola e Patrimônio ameaçado.