Instrumento musical caro aos gaúchos, a gaita chegou ao Estado com os imigrantes
Residência de madeira, Casa Ferri (centro) de Santa Tereza foi primeira fábrica de acordeão do Brasil. CAROL ZATT/ESPECIAL/JC |
O instrumento gaita, como conhecemos aqui no Estado do Rio
Grande do Sul, também é chamado de acordeão, talvez pela sonoridade
herdada da proximidade que temos os países vizinhos do Prata, cuja
cultura é marcada pela produção musical com a sonoridade deste objeto
sonoro utilizado como meio de expressão. Já no Nordeste, os ritmos
tradicionais são feitos pela sanfona, como o mesmo instrumento é
conhecido também no Sudeste.
Esse mapeamento geográfico pelo Brasil, com a explanação dessas diferenças de uso e de nomenclatura, é mote do documentário O milagre de Sta. Luzia
(2008), de Sérgio Roizemblit. O audiovisual também foi exibido como
série televisiva no Canal Brasil e fez parte de um livro lançado pela
produtora cultural, pesquisadora e curadora Myriam Taubkin (irmã do
grande músico brasileiro Benjamim Taubkin), O Brasil da sanfona (2003).
Segundo Myriam, o instrumento harmônico foi inventado por um
vienense fabricante de órgãos de igreja, em 1829. Ganhou terreno na
Itália e chegou ao Brasil, primeiramente, com a imigração italiana. Foi
trazido, também, por portugueses e alemães das fronteiras com Argentina,
Uruguai e Paraguai. "Na década de 1950, o instrumento atingiu seu
apogeu no Brasil: 40 fábricas de acordeão funcionavam a pleno vapor,
hoje resta uma em Santa Rosa, Rio Grande do Sul", conforme a
pesquisadora escreve na publicação.
A pioneira dessas fábricas foi sediada na famosa Casa Ferri,
integrante do núcleo urbano tombado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Santa Tereza, na serra gaúcha,
em 2010. A edificação, toda em madeira, chegou a correr o risco de
desabar, antes da restauração, entregue em 2014. Ela fica na esquina da
descida da avenida Itália, na mesma quadra do casarão antigo da
prefeitura, que vai até a praça da igreja da cidade.
Município gaúcho emancipado de Bento Gonçalves em 1992, por decreto
do governador Alceu Collares, Santa Tereza nasceu com a colonização
italiana e polonesa iniciada em 1885 às margens do Rio Taquari, na Linha
José Túlio. Em seus prédios históricos conservados, a arquitetura
eclética mantém os elementos culturais trazidos do norte da Itália
(regiões do Vêneto, Lombardia, Friuli, Venezia-Giulia e Trentino
Alto-Ádige), com semelhanças à das vilas daquela região.
Pioneiros na serra gaúcha
Gaitas de botão feitas pelo casal de italianos Appiani e Maria Savoia em vitrine do Museu do Imigrante, em Bento Gonçalves. CAROL ZATT/ESPECIAL/JC
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Hoje, a Casa Ferri é a
mais antiga edificação que continua erguida na cidade, datando de 1910.
Abrigou o casal de cremoneses Cesare Appiani e Maria Savoia, que trouxe
da Itália seu conhecimento e equipamento, transformando o espaço na
primeira fábrica de gaitas do Brasil.
Ali, eles montaram os primeiros
instrumentos musicais, gaitas de botão, e difundiram a técnica de
fabricação, tendo aprendizes na sua oficina, incluindo Luigi Somensi e
Luiz Todeschini - que, em 1925,montaram a primeira gaita-piano do País.
Com a morte de Somensi, em 1930,
Todeschini comprou a oficina e em 1932 fundou "A Grande Fábrica de
Instrumentos Musicaes a Foles de Luiz M. Todeschini", que se tornaria,
mais tarde, a maior da América Latina, com mais de 700 empregados.
A primeira gravação de acordeão no Rio
Grande do Sul ocorreu nos primeiros anos do século XX, por Moisés
Mondadori (o primeiro grande gaiteiro desta terra, para Paixão Côrtes,
no livro Aspectos da música e fonografia gaúchas, de 1984). Em
1910 (data da construção da Casa Ferri), o "Cavaleiro Moysé", como ficou
conhecido artisticamente, foi campeão de vendas do selo Disco Gaúcho, da Casa A Electrica, segunda gravadora com fábrica própria na América Latina.
O acordeão na música regional e contemporânea
Luciano Maia, agora estabelecido no Rio de Janeiro, era uma revelação no documentário O milagre de Sta. Luzia, de 2008. GIOVANI VIEIRA/DIVULGAÇÃO/JC
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Nos anos 1950, Chiquinho
do Acordeom saiu de Santa Cruz do Sul, no Interior, diretamente para a
Rádio Nacional do Rio de Janeiro, onde setornaria inseparável
doconterrâneo Radamés Gnattali. Na mesma década, houve o êxito dos
Irmãos Bertussi e do Conjunto Farroupilha (com o maestro gaiteiro Tasso
Bangel), seguido de mestres como Albino Manique, Gilberto Monteiro, Tio
Bilia e Luiz Carlos Borges. Este último - que se diz discípulo de Adelar
Bertussi - tem bastante reconhecimento em países da América Latina, mas
incomparável à projeção nacional e internacional alcançada no fim do
milênio e mantida atualmente por Renato Borghetti - "o Liszt da
gaita-ponto" para Arthur Nestrovski.
Do Rio Grande do Sul- um celeiro
germinante de acordeonistas talentosos -, além de Borghettinho, Luiz
Carlos Borges e Gilberto Monteiro, participam do já citado documentário O milagre de Sta. Luzia
(2008) Edson Dutra (acordeonista de Os Serranos), Oscar dos Reis
(professor deste último e também de Michel Teló), Bagre Fagundes, Bebê
Kramer e, à época, uma revelação, Luciano Maia. Outros nomes de sucesso
no universo gaudério ligados ao instrumento são Ademar Silva (primeiro
gaiteiro de Teixeirinha), Mary Terezinha ("a menina da gaita"), Berenice
Azambuja e Gaúcho da Fronteira.
Em âmbito nacional, contemporaneamente,
também se apresentam como destaque Samuca do Acordeon, que parte do
regionalismo, passeia pelo som da Região do Prata e chega ao genuíno
choro, e o Quinteto Persch, formação exclusiva de acordeonistas. Mais
recentemente, o menino Thomas Machado venceu o programa global The Voice
Kids acompanhado de sua gaitinha.
No Estado, vêm ainda chamando atenção
nos palcos e nos discos Paulinho Goulart, Paulinho Cardoso, Guilherme
Goulart, Matheus Kleber, Fofa Nobre, Jéssica Thomé e Gabriel Romano
Gonzalez, entre outros, que devem sua carreira artística a uma semente
disseminada nestes pagos pelos colonos italianos.
Fonte! Chasque (reportagem) de Caroline Zatt da Silva, publicado nas páginas do Jornal do Comércio de Porto Alegre (RS), na edição do dia 25 de maio de 2020.
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