segunda-feira, 8 de junho de 2020

História da gaita no Rio Grande

Instrumento musical caro aos gaúchos, a gaita chegou ao Estado com os imigrantes

Residência de madeira, Casa Ferri (centro) de Santa Tereza foi primeira fábrica de acordeão do Brasil

Residência de madeira, Casa Ferri (centro) de Santa Tereza foi primeira fábrica de acordeão do Brasil. CAROL ZATT/ESPECIAL/JC

O instrumento gaita, como conhecemos aqui no Estado do Rio Grande do Sul, também é chamado de acordeão, talvez pela sonoridade herdada da proximidade que temos os países vizinhos do Prata, cuja cultura é marcada pela produção musical com a sonoridade deste objeto sonoro utilizado como meio de expressão. Já no Nordeste, os ritmos tradicionais são feitos pela sanfona, como o mesmo instrumento é conhecido também no Sudeste.
 
Esse mapeamento geográfico pelo Brasil, com a explanação dessas diferenças de uso e de nomenclatura, é mote do documentário O milagre de Sta. Luzia (2008), de Sérgio Roizemblit. O audiovisual também foi exibido como série televisiva no Canal Brasil e fez parte de um livro lançado pela produtora cultural, pesquisadora e curadora Myriam Taubkin (irmã do grande músico brasileiro Benjamim Taubkin), O Brasil da sanfona (2003).
 
Segundo Myriam, o instrumento harmônico foi inventado por um vienense fabricante de órgãos de igreja, em 1829. Ganhou terreno na Itália e chegou ao Brasil, primeiramente, com a imigração italiana. Foi trazido, também, por portugueses e alemães das fronteiras com Argentina, Uruguai e Paraguai. "Na década de 1950, o instrumento atingiu seu apogeu no Brasil: 40 fábricas de acordeão funcionavam a pleno vapor, hoje resta uma em Santa Rosa, Rio Grande do Sul", conforme a pesquisadora escreve na publicação.
 
A pioneira dessas fábricas foi sediada na famosa Casa Ferri, integrante do núcleo urbano tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Santa Tereza, na serra gaúcha, em 2010. A edificação, toda em madeira, chegou a correr o risco de desabar, antes da restauração, entregue em 2014. Ela fica na esquina da descida da avenida Itália, na mesma quadra do casarão antigo da prefeitura, que vai até a praça da igreja da cidade.
 
Município gaúcho emancipado de Bento Gonçalves em 1992, por decreto do governador Alceu Collares, Santa Tereza nasceu com a colonização italiana e polonesa iniciada em 1885 às margens do Rio Taquari, na Linha José Túlio. Em seus prédios históricos conservados, a arquitetura eclética mantém os elementos culturais trazidos do norte da Itália (regiões do Vêneto, Lombardia, Friuli, Venezia-Giulia e Trentino Alto-Ádige), com semelhanças à das vilas daquela região.

Pioneiros na serra gaúcha

Gaitas de botão feitas pelo casal de italianos Appiani e Maria Savoia em vitrine do Museu do Imigrante, em Bento Gonçalves
Gaitas de botão feitas pelo casal de italianos Appiani e Maria Savoia em vitrine do Museu do Imigrante, em Bento Gonçalves. CAROL ZATT/ESPECIAL/JC
Hoje, a Casa Ferri é a mais antiga edificação que continua erguida na cidade, datando de 1910. Abrigou o casal de cremoneses Cesare Appiani e Maria Savoia, que trouxe da Itália seu conhecimento e equipamento, transformando o espaço na primeira fábrica de gaitas do Brasil.
 
Ali, eles montaram os primeiros instrumentos musicais, gaitas de botão, e difundiram a técnica de fabricação, tendo aprendizes na sua oficina, incluindo Luigi Somensi e Luiz Todeschini - que, em 1925,montaram a primeira gaita-piano do País.
 
Com a morte de Somensi, em 1930, Todeschini comprou a oficina e em 1932 fundou "A Grande Fábrica de Instrumentos Musicaes a Foles de Luiz M. Todeschini", que se tornaria, mais tarde, a maior da América Latina, com mais de 700 empregados.
 
A primeira gravação de acordeão no Rio Grande do Sul ocorreu nos primeiros anos do século XX, por Moisés Mondadori (o primeiro grande gaiteiro desta terra, para Paixão Côrtes, no livro Aspectos da música e fonografia gaúchas, de 1984). Em 1910 (data da construção da Casa Ferri), o "Cavaleiro Moysé", como ficou conhecido artisticamente, foi campeão de vendas do selo Disco Gaúcho, da Casa A Electrica, segunda gravadora com fábrica própria na América Latina.

O acordeão na música regional e contemporânea

Luciano Maia, agora estabelecido no Rio de Janeiro, era uma revelação no documentário O milagre de Sta. Luzia, de 2008
Luciano Maia, agora estabelecido no Rio de Janeiro, era uma revelação no documentário O milagre de Sta. Luzia, de 2008. GIOVANI VIEIRA/DIVULGAÇÃO/JC
Nos anos 1950, Chiquinho do Acordeom saiu de Santa Cruz do Sul, no Interior, diretamente para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, onde setornaria inseparável doconterrâneo Radamés Gnattali. Na mesma década, houve o êxito dos Irmãos Bertussi e do Conjunto Farroupilha (com o maestro gaiteiro Tasso Bangel), seguido de mestres como Albino Manique, Gilberto Monteiro, Tio Bilia e Luiz Carlos Borges. Este último - que se diz discípulo de Adelar Bertussi - tem bastante reconhecimento em países da América Latina, mas incomparável à projeção nacional e internacional alcançada no fim do milênio e mantida atualmente por Renato Borghetti - "o Liszt da gaita-ponto" para Arthur Nestrovski.
 
Do Rio Grande do Sul- um celeiro germinante de acordeonistas talentosos -, além de Borghettinho, Luiz Carlos Borges e Gilberto Monteiro, participam do já citado documentário O milagre de Sta. Luzia (2008) Edson Dutra (acordeonista de Os Serranos), Oscar dos Reis (professor deste último e também de Michel Teló), Bagre Fagundes, Bebê Kramer e, à época, uma revelação, Luciano Maia. Outros nomes de sucesso no universo gaudério ligados ao instrumento são Ademar Silva (primeiro gaiteiro de Teixeirinha), Mary Terezinha ("a menina da gaita"), Berenice Azambuja e Gaúcho da Fronteira.
 
Em âmbito nacional, contemporaneamente, também se apresentam como destaque Samuca do Acordeon, que parte do regionalismo, passeia pelo som da Região do Prata e chega ao genuíno choro, e o Quinteto Persch, formação exclusiva de acordeonistas. Mais recentemente, o menino Thomas Machado venceu o programa global The Voice Kids acompanhado de sua gaitinha.
 
No Estado, vêm ainda chamando atenção nos palcos e nos discos Paulinho Goulart, Paulinho Cardoso, Guilherme Goulart, Matheus Kleber, Fofa Nobre, Jéssica Thomé e Gabriel Romano Gonzalez, entre outros, que devem sua carreira artística a uma semente disseminada nestes pagos pelos colonos italianos.
 
Fonte! Chasque (reportagem) de Caroline Zatt da Silva, publicado nas páginas do Jornal do Comércio de Porto Alegre (RS), na edição do dia 25 de maio de 2020.

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