domingo, 3 de junho de 2012

Vanerão do Boca Braba

 Crédito: arte de luiz octávio sobre foto de daniel badra 

Tenho alma bolicheira porque fui parido sobre um balcão enquanto a cordeona roncava num vanerão bem crinudo. Era um sábado de festa lá no Cerrito e quando abri a boca não chorei. Tinha vindo antes do tempo. Dizem que dei um berro como touro recém-pelejando a guampa, abrindo rodeio e que a indiada toda se alvoroçou. Por isso, o velho Lara, gaiteiro dos mais campeiros, apertou o fole e sapecou uma vanera e dedicou a mim, que nascia, sua marca mais conhecida, o Vanerão do Boca Braba.

Cortaram meu umbigo com a tesoura da velha Hilda, costureira de mão cheia que fazia todas as bombachas da gauchada ali da Vila dos Eucaliptos, do Rincão dos Melos, dos Bastos, da Igrejinha. Minha mãe seguiu os ciganos, ficou de voltar, mas nunca voltou, e fui criado pela minha tia, bolicheira também, curandeira de quebranto, rezadora e até parteira nas horas de precisão. Tia Jurema, que Deus a tenha no céu. Ela queria fazer às vezes de minha mãe, mas eu não aceitei. De mal-educado que sempre fui. Então, um dia me larguei campo a fora, levando tudo por diante. Lembro que levei apenas o gateado, minha gaitinha de oito baixos e uma fotografia amarelada da mãe. Sempre fui pachola, alegre, despachado, não me importava de andar sozinho no mundo.

Fui ganhando a vida, tocando gaita, violão e fazendo a alegria da tigrada daquelas paragens. Lascava todo dia novas milongas, vanerões e xotes. Quando estourava a peleia, puxava minha adaga e saía terçando o ferro como se nada fosse comigo, brigava rindo e cantando, não tinha medo do perigo. Como tinha nascido quase morto, o que viesse era lucro, por isso não me importava com nada.

Mas era alegre, isso era. Sempre fui. Ria e assobiava enquanto brigava e isso irritava os adversários. Um homem brabo é um homem sem razão. Por isso, aconselho, nunca se irrite, a alegria é que dá paz e serenidade. Um homem feliz sempre vence.

Assim vivi, bolicheando, jogando carta, atirando a tava, correndo carreira, dançando até as minhas alpargatas ficarem barbudas nos terreiros beira de estrada da Vila Rica, de Tupã, da Cruz Alta, da Palmeira, da Fronteira, pelos pagos da Serra, até nas areias quentes do Litoral. Quando eu chegava, todos já abriam o sorriso largo, pois sabiam que não havia nascido para culatrear tropa, pegar no arado, erguer ranchos, tosar ovelhas e semear o trigo. Vim ao mundo e dele me despedi como o anguera, o dançarino que nunca morre porque ele é a festa, o fandango, o bailongo, a alegria de viver. A representação da vida, o generoso, aquele que foi ungido pelos óleos dos santos padres jesuítas e, por isso, veio ao mundo, para renascer no coração dos homens tristes...

(Para todos os gaiteiros e artistas populares do Rio Grande)

Fonte! Chasque publicado na Coluna Camperiada, por Paulo Mendes | pmendes@correiodopovo.com.br, no Caderno Correio Rural, do Correio do Povo de Porto Alegre, na edição do dia 03 de junho de 2012. Abra as porteiras clicando em http://www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=117&Numero=247&Caderno=11&Noticia=429364

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