quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O GAITEIRO CANHOTO!



Buenas Gauchada!
A lida campeira me pealou a semana toda, mas como hoje é domingo, vou folgando da labuta rural, sem abrir mão do ritual galponeiro.
Estou preparando uma costelinha de borrego cara negra, dois dentes, prá espetar na trempe do fogo de chão, enquanto, despacito vou cevando um mate amargo amadrinhado por um “xarope anti-gripal” – canha, mel e garupá – , já que nestes dias de invernia, todo o cuidado com os polmão, se faz necessário para evitar a tosse comprida.
Enquanto eu empareiava as brasa prá aquentá o assado, dei um jeito de puxar um dedo de prosa com o Eleutério, meu peão galponeiro, prá ver se ele parava de se benzer – como ele diz - no meu “xarope”.
Como motivo prá trela, lhe falei sobre um desafio que fizera o Léo Ribeiro, por meio de seu blog, sobre o “erro” que fora cometido na execução do Monumento ao Gaiteiro, que está instalado no Parque da Fenavinho, na bela cidade serrana de Bento Gonçalves.
Como ia ligar o computador para penetrar no fascinante mundo cibernético, antes precisava limpar bem as mãos, já que naquele momento estavam bastante sujas de gordura, em função da atividade de preparar a carne de ovelha para colocar no espeto.
Saí do galpão e atravessei o pátio por baixo da copa das laranjeiras, fazendo voar, em estardalhaço, um casal de sabiás que ali se empanturravam de laranjas maduras.
Entrei pela porta da cozinha, passei a mão num alvo pano de algodão, que encontrei pendurado num porta panos, preso na parede sobre o fogão a lenha e já fui levando uma bronca:
- Não me limpa as mãos no pano de prato. Principalmente neste, que a tua sogra fez na turma do artesanato da Igreja Santa Terezinha e me deu de presente, disparou a Dona Sandra, a chinoca que manda na cozinha.
É..., manda na cozinha, na sala, nos quartos e também no galpão e neste peão – porque não dizer, não me mesmo?
Foi aí que eu prestei atenção na tal da relíquia caseira. Era um retângulo de tecido algodoado, empotreirado por bicos, compostos por delicadas carreiras de uma fina linha de crochê, na cor amarelo-alaranjado e no terço inferior, decorado pela pintura de uma cuia, uma bomba e uma chaleira fumegante, sobrepondo a frase: Deus abençoe este lar.
Agora o tal relicário, apesar da imponência, jazia embolado e todo sujo de gordura de ovelha, sobre o espaldar de uma cadeira.
Ainda ouvindo o eco da lambança, peguei o computador, voltei para o galpão e por motivos óbvios, optei por fazer um outro caminho. Liguei a máquina, abri o blog do Léo, campiei a postagem, mostrei a imagem da escultura, essa aí embaixo, para o Eleutério e para minha grande surpresa, nem lhe bateu a passarinha.
Ele olhou a imagem e, mais entonado que padre dando sermão em borracho, abriu o palavrório:
- Tchê, tu conhece a estauta do gaúcho, aquela que copeia o semblante do guasca Paxão Cortes?
- Claro que conheço. Qual é o gaúcho que não conhece?
- Tu não mintendeu, burro véio, eu te preguntei se tu sabe da lenga-lenga dela, me interpela, insolentemente, ele.
- pos óia só, tchê! Anssim como o Paxão serviu de mostra pru escultor, um gringo chamado Caringi, quem se presto prá esse papel na estauta do gaitero foi meu parcero, o índio Ormiro.
- Ô Eleutério! deixa de ser caduco, homem. Onde se viu uma história dessas? perguntei-lhe, com incredulidade e até com um certo ceticismo.
- Vô te contá tim-tim por tim-tim, vô te prová e se tu não quizé acreditá, o prolema é teu. Vô ali no meu catre, pegá umas chapa véia que eu carrego nas bruaca e já volto. Inquantu isso tu vai te abancando, tá bueno?
Quando chega, trás nas mãos, calejadas pela lida e trêmulas pelo transcurso da vida, duas fotografias, amareladas pelo tempo e com a voz pausada, mas firme, vai me dizendo: esses retrato são muito raro e valem muitos pila, ninguém más tem, mas eu não vendo de jeito nimhum, são as prova de que eu e Ormiro, um dia, também fizemo parte dessa história.
Deu uma fungada profunda, escarrou pro lado, passou a alpargata desbeiçada no cuspe e continuou:
- De certa feita eu e o Ormiro, cansados das tropeadas de gado lá pras banda do norte, nos enfiemo de changueros nas granja de criação de porco em Daltro Filho. Isso mas o meno na metade dos ano de mil novecento e sessenta, mas muito antes daquela terra trocá o nome prá Imigrante.
Numa olada de fim de semana, nós fumo prá uma festa na comunidade, organizada pelos freis do Convento dos Franciscano e o Ormiro, bom de gaita uma barbaridade, de oferecido se atraco a tocá. Não é que o índio véio fez um bailaço daqueles - buenacho por demás, tchê!
Quando a festança treminô, um dos participantes se aproximo do Ormiro e pregunto se ele não quiria ganhá uns pila mais. Como nós andava contando os caraminguá, aceitemo topá a parada.
Eu disse que nós aceitemo a parada, porque sabia que o meu comparsa não ia me dexá na mão e como nós já era parcero a tempos, intaum a parada era nossa. E foi isso que o Ormiro disse pru homi.
O Homi – mas tarde nóis fiquemo sabeno que era o Frei Nelson Muller – disse que esse sirviço não pricisava de dois, que um só era mas que suficiente. E aí foi isplicano prá nóis a tal da faina.
- Meu confrade, que também trabalha como escultor, recebeu uma encomenda para fazer uma estátua e me parece que a figura de um de vocês se enquadra, bastante bem, na ideia que ele pretende desenvolver. Vamos ao Convento São Boaventura, que eu quero apresentar vocês ao Frei Osvaldo.
Lá fumo nóis. Um corredorzão, cheio de porta de um lado, um jardinzote bem verde no outro avarandado, com um monte de parmera, bem altonas, no meio e o Ormiro, inxerido como ele só, foi si infiando corredor adentro.
Como nós tinha se pilchado prá balaquiá no surungo, nós tava nus trinque. Cada um de bombacha, bota, pala nas espalda, o aba larga de tropero, a la Oreliano – como se dizia, e o cuera do Ormiro, prá se inzibi, ainda me bota um tirador e uma espora, daquelas cantadera, que naquele corredorzão do convento fazia um tirim-tim-tim – que Deus me perdoe – dus diabo.
 Quase no fim do dito corredor frei Nelson nos mostra uma sala, convida prá gente entrá e pede prá aguardá que ele vai chamar o outro frei.
Na volta, acompanhado do frei Osvardo, apresenta nóis dois e pede que seu colega nos isplique mió o trabaio que ele tinha proposto prá nóis.
O frei Osvardo diz prá nóis que pricisa de um gaúcho pelo duro prá servi de modelo prá uma estauta incomendada pelo Sinhôr Luiz Matheus Todeschini, dono de uma fábrica de gaita, do município de Bento Gonçalves e que quiria infeitá a frente da fábrica com um gaúcho tocando uma sanfona, que era o que ele vendia prá toda a peonada que se metia a ser gaitero.
Como o frei achou que o Ormiro tinha a estampa boa prá precisão dele e adespos de acertá o preço do sirviço, incrusive a minha participação, se nóis quisesse, já pudia impeça o trabaio no otro dia.
Voltemo no outro dia. O Ormiro, pilchadito no más, de vereda já foi passando a mão numa gaita que estava no galpão, incima duma pedra, chamada pelo frei de arenito, deu uma rasqueada nos teclado, infiou os dedo nas botoneras e me solta um vanerão lascado - Lágrimas de Mãe – do Reduzino Malaquias.
Mas óia só, tchê! Como nós tava num galpão nus fundo do convento, quando o Ormiro soltô a última nota, parecia que os anjo tinhum baxado por lá.
O Frei Nelson saracoteava num canto, inquanto o frei Osvardo, cum us óio marejado e a boca meia aberta, não dava um pito siquer e eu, que só ficava oiando tudo, larguei um sapucai, que eu acho que tá retumbano inté hoje.
Foi naquele momento mágico que o escultor, que se arranchava no peito daquele padre, se revelô prá nóis, dizeno: Companheiros, em primeiro lugar meu nome é Osvaldo – com a letra L - frisô ele, e a gaita que tu acabou de tocar, que vai ficar eternamente retratada neste bloco de arenito, é um acordeon Todeschini, de oitenta baixos, modelo artist dois, fabricado em mil novecentos e cinquenta.
Despos, oiando bem na cara do Ormiro, disse prá ele que a estampa dele ia ficá pra toda vida entreverada naquela baita pedra de três metro de altura e mais de dois mil e quinhentos quilo e insiguidita, com uma mistura de martelo cum machado, se pego a marretiá a pedra.
Bueno, a partir daí e por um monte de dias, que inté nem lembro más quantos, era o Ormiro fazendo pose, parado e duro como dois de pau e o frei Osvardo – com l , que mais parecia um pica pau nas tronquera, com aquele monte de ferramenta, meta a marretiá o tal bloco de arenito.
Mas barbaridade vivente, como valeu a pena! Quano o frade avisô que a obra tava pronta, era o Ormiro, cuspido e iscarrado. Só faltava falá, porque da Todeschini véia eu inté ovia o resfolego dela, abrino, fechanu e derramanu as Lágrima da Mãe.
Terminada a faina nós voltemo prás nossa changa, daí um par de dias, frei Nelson nos avisô que a estauta ia ser levada prá Bento e eles pricisavum de peão prá ajudá no transporte. Não deu outra, fumo nós os contratado.
No dia acertado, lá tava nóis e incostado no galpão, de prontidão pru embarque do Gaitero, o Chevrolet Marta Rocha, da Guindastecchio.
Subimo na carroceria, peguemo uma corda de sisal, mais grossa que cabo de mango, passemo por cima da gaita e pur baxo do suvaco do “Ormiro”; nas costa fizemo um nó de argola, puxemo as ponta prá frente e tramemo a corda bem imbaxo da cordeona; insiguidita, despos de infiá o gancho do guindaste na argola, dei um berro pro guindastero – prá riba, índio véio.
Gemeu o guindaste, a carroceria começo a istralá, e o Gaitero, dando uma gambetiada prá frente, impeço a subi. Aí quem não arresistiu fui eu. Abri bem a munheca, infiei os cinco dedo na cara – de pedra – do “Ormiro” e me soquei na boleia do Chevrolet, no rumo de Bento Gonçalves, prá istalá a estauta nas terra duma tal de Fenavinho. Aí tá a chapa, viste?
- Espera aí, Eleutério, Tu falaste que a estátua era prá enfeitar a frente da fábrica, mas, na foto, ela aparece em frente de um pavilhão Fenavinho. Vê se tu desenleia direito causo.
- Até aí tu tem razão. O seu Luiz Todeschini foi convidado prá sê o Vice do Sinhô Moysés Michelon, que era o Presidente da Fenavinho. Como o Luiz era dono da fábrica de gaita, entonce vivia sem tê ninhum entrevero cum negócio de vinho, foi aí que ele teve a tenência de só imprestá o Gaitero, prá infeitá o sítio do premero festival do vinho da serra gaúcha. Intendeu agora?
- Ô Eleutério, entendi mais ou menos, mas até agora tu me contaste toda a lenga-lenga, e ainda não me falaste nada sobre o erro que existe no monumento.
- Donde tu tirô que tem erro na Estauta? Olha esse outro retrato.
- Tá vendo? Não fazia nem uma hora que nóis tinha descido ela do caminhão. Nela aparece o homi da incomenda, o tal de seu Luiz, com o casaco no braço, pilchado o frei Nelson e de braço cruzado o Frei Osvaldo.
- Olha Tchê! tu sabes que o Léo é um cuera curtido nas lidas campeiras, eu entendo um pouco menos, mas tu, faz muito tempo, que trabalhas como tropeiro e não enxergas que, nessa foto, o tirador está no lado direito, enquanto deveria ser feito sobre a perna esquerda?
- Ah! Entonces o tal de erro é esse?
- Mas claro que é esse, tchê! Tu ainda não viu?
- Intaum não tem ninhum erro, cosa ninhuma. Pos naum é que o Ormiro é canhoto, tchê?!!  
Fonte! Coluna Charla de Peão, por Juarez Cesar Fontana Miranda (poeta nativista), publicada no Jornal Regional do Comércio, dos pagos da cidade litorânea de Cidreira (RS), edição desta última semana de agosto de 2014. Contatos com o colunista, mande um chasque abagualado para juarezmiranda@bol.com.br ou jornaljrcl@terra.com.br

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